E se, de todas as atletas que dominam as pistas de skate no mundo inteiro, a maior entre elas fosse uma fadinha brasileira?
Onde tu estavas quando as Olimpíadas de Tóquio estavam acontecendo?
Em casa, claro — afinal, todos estávamos respeitando a pandemia e esperando ansiosamente que aqueles momentos de aflição acabassem. Tudo era ansiogênico e pouquíssimas coisas prendiam totalmente nossa atenção. Estudar e trabalhar haviam se tornado mais difíceis; qualquer mísera tosse nos enchia de um medo quase irracional. Precisávamos, mais do que nunca, nos agarrar a entretenimentos leves. O período pandêmico trouxe um boom de produção cultural e acesso a programas que nos transportassem, pelo menos um pouco, para outro lugar. Um lugar onde pudéssemos estar todos juntos, sentindo o calor humano uns dos outros em meio a uma só torcida, talvez.
Esse momento, para mim, aconteceu durante aquela competição de skate street em que uma menininha de 13 anos se colocou em disputa com as maiores de sua modalidade. Um serzinho tão pequeno, com ambições tão grandes, se revelava aos olhos de todos os brasileiros naquele instante. Quem já a conhecia se encheu de orgulho. Quem estava sendo apresentado ali se apaixonou instantaneamente. A ousadia de acreditar ser possível voar acima do seu shape, diante dos olhos do mundo inteiro, não é extremamente brasileira? Eu acho que sim.
Rayssa é natural de Imperatriz, no Maranhão, e, aos 6 anos, encontrou sua paixão em cima de um skate — completamente para a nossa sorte. Desde cedo, a menina começou a praticar e, aos 7 anos, já viralizava na internet em um vídeo em que aparece fazendo manobras com asas de fada nas costas. Um vídeo inocente, mostrando treinos impressionantes de uma criança fantasiada. Tudo para ser comum. Nada muito diferente do que vemos pelas redes normalmente. A questão é que a menina ali mostrada não era nada comum. Ela era os primeiros passos de uma futura grande atleta. Talvez, os primeiros voos.
Quando aquele pingo de gente, no auge de sua pré-adolescência, colocou suas rodas no chão do Ariake Urban Sports Park, levou um pouco de todos nós para lá. Já fazia mais de um ano que estávamos passando pela quarentena e, depois de tanto tempo, estávamos todos juntos respirando o ar fresco do distrito de Kōtō, sincronizando as batidas dos nossos corações. Nada podia atrapalhar a nossa Fadinha em um momento tão importante. Em um silêncio altíssimo, assistimos aos primeiros movimentos de uma atleta olímpica se transformarem em manobras que nem os próprios narradores estavam esperando. Rayssa Leal já era um fenômeno antes mesmo de terminar sua primeira volta. Rayssa Leal já era um fenômeno nosso. Muito nosso.
Até que as Olimpíadas de Tóquio fechassem seu ciclo na cidade de Paris em 2024, a Fadinha adicionou à sua coleção de medalhas dez novas peças — dessas, sete de ouro. A preparação para os Jogos Olímpicos contou com várias competições e um calendário cheio de desafios. Em Salt Lake City, disputando um campeonato da Street League Skateboarding (SLS), Rayssa também iniciou a tradição de não deixar nenhum brasileiro sair com o coração saudável de suas batalhas. Na última rodada de manobras, Rayssa precisava de um incrível 8,3 para ultrapassar a adversária japonesa Funa Nakayama e conquistar o primeiro lugar. Aquela nota, para ser obtida, pedia uma manobra fora do comum. Pedia uma manobra com a assinatura da Fadinha do Brasil.
Como se estivesse fazendo o que todo mundo faz, Rayssa colocou seu truck no solo e pegou velocidade. Não havia tempo, nem espaço para errar. Apesar da ansiedade, os corrimãos, degraus e quarter pipes não eram seus inimigos. Todos os elementos ali contidos eram palavras sendo escritas para contar sua história. Protagonizando o primeiro kickflip seguido de manobra da história da modalidade feminina, ela não conseguiu um 8,3. Rayssa, como todo brasileiro que se preze a ser o melhor, foi além. A maior nota da SLS feminina é o 8,5 que deu ao Brasil o primeiro ouro da temporada de 2021.
Depois daí, o pódio virou o lugar comum onde se via Rayssa após grandes eventos. Nem sempre no topo, mas sempre mostrando o resultado da sua excelência e da sua garra. Rayssa é o produto de muitos meios que a tornaram o ser humano que é agora, contudo, devemos sempre lembrar que ela ainda está em formação.
Apesar da carreira estrelada que a Fadinha já possui, Jhúlia Rayssa Mendes Leal é uma pessoa normal que, entre campeonatos e vitórias, frequenta a escola como todos nós. Ela se destaca em competições de handebol, tem alguns problemas com matérias mais complicadas e ainda tira um tempo para ser uma menina gentil.
Tanto Jhúlia quanto Rayssa têm medo. Inclusive, o pedido negado para que Lilian Mendes, mãe da atleta, dormisse com ela no alojamento durante as Olimpíadas de 2024 virou notícia. Muitos bateram na tecla de que Rayssa não era mais uma criança, logo não havia motivo para que sua mãe ganhasse uma credencial para a Vila Olímpica. Muitos, no entanto, se compadeceram com o discurso sobre saúde mental adotado pela menina. Às vezes, o brilho dos seus prêmios nos cega e não conseguimos entender que, por trás de tanto ouro, está apenas aquela jovem que está aprendendo a viver tanto quanto qualquer um de nós.
Apesar do estresse, mais uma vez assistimos a Rayssa brincar com a nossa saúde cardíaca ao deixar a decisão do pódio para a última volta. Como é que apenas uma manobra sobe uma atleta de uma das últimas posições até o bronze? Como, depois disso, ela se torna tetracampeã do STU Pro Tour e tricampeã mundial da SLS? Mistérios que apenas humanos sobrenaturais como a nossa Rayssa sabem desvendar.
Aliás, adivinha como a Fadinha voou até o primeiro lugar do campeonato mundial? Ela deixou para o final, de novo. Rayssa errou as duas primeiras manobras da última disputa, sabendo que, se errasse mais uma, o sonho do tricampeonato estaria morto. Mesmo assim, respirou fundo e decidiu que as próximas três voltas seriam as mais importantes de sua vida. E assim foram. Duas notas 9 e um 8,7 tornaram a nossa Rayssa a maior campeã da modalidade.
Mesmo assim, não é isso que faz Rayssa ser a cara do Brasil. Não é seu talento, tampouco suas conquistas palpáveis. Rayssa é a cara do Brasil porque o Brasil se abala, mas não desiste. A gente até protela, mas termina o que começou. Não importa se faltam duas voltas ou uma competição inteira, nós vamos entregar o nosso máximo e, se dessa vez não for o suficiente, da próxima vai ser.
Sem medo de ser tantas em uma só.
Sem medo de ser vulnerável.
Sem medo de demonstrar fraqueza.
Sem medo de ter medo.
É assim que a gente aprendeu a voar.
Texto por: Luiza Corrêa
Edição: Lucas Guedes
Revisão: Victor Souza