Kamilla Cardoso é tratada como uma jogadora mediana mesmo tendo sido a terceira escolha do draft de 2024, por que será?
A temporada de 2025 da Women's National Basketball Association (WNBA) começou e as primeiras partidas já entregaram um pouco mais de “entretenimento” do que estávamos esperando. Em meio a placares elásticos, rookies surpreendendo ao entregar números absurdos em jogos de estreia e veteranas decepcionando ao não saberem jogar coletivamente, um dos protagonistas da primeira semana de campeonato foi o… racismo. Pois é.
Quem assiste basquete sabe muito bem que as raízes do esporte até podem estar na Associação Cristã de Moços (ACM) em Springfield, Massachusetts, mas que o coração e a alma do esporte estão fortemente ligados com a cultura negra dos Estados Unidos. Não que exista algum tipo de apartheid - até porque isso é coisa de branco -, porém é inegável que a cultura musical, fashion e até as vivências negras tiveram um grande impacto em todo o entorno do do basquetebol, seja dentro ou fora das quadras. Contudo, alguma coisa aconteceu em 2024.
Enquanto o W da sigla quer dizer “women”, depois da entrada da superestrela do college, Caitlin Clark, no draft do ano passado, a letra começou a significar “white” para muitos torcedores. E, sim, esse é um assunto muito delicado. Não, a camisa 22 do Indiana Fever nunca teve nenhuma fala abertamente racista ou que nos fizesse entender que ela está do mesmo lado que muitos dos seus fãs no momento em que eles decidem fazer meninas negras como Dijonai Carrington e Angel Reese de alvo para os seus comentários maldosos. Mesmo assim, Clark nunca assumiu sua responsabilidade como figura pública de educar aqueles que a seguem. Ela, inclusive, fez o exato contrário. Ao invés de falar abertamente sobre a relação entre sua fã base e a sua branquitude privilegiada - como fizeram Sabrina Ionescu, Cameron Brink e muitas outras -, a armadora simplesmente disse que não poderia ser responsabilizada pelo que terceiros faziam. Mesmo que os façam em seu nome, ao que parece.
Estávamos apenas no segundo dia da competição e o X (antigo Twitter) já estava comentando sobre supostos atos de racismo protagonizados dentro da Gainbridge Fieldhouse, casa do Indiana Fever, time de Caitlin Clark. Durante o embate contra o Chicago Sky de Kamilla Cardoso e Angel Reese, Clark cometeu uma falta flagrante em cima da camisa 5 do time visitante. Revoltada com a jogada suja da adversária, Reese levantou do chão e foi direto “para cima” da camisa 22, que simplesmente deu as costas protegida por colegas de equipe. Mesmo que os gritos de Angel tenham apenas perguntado se Clark tinha algum problema com ela, a vítima da situação saiu como agressiva e quem cometeu a falta saiu como vítima. Típico.
Na hora de cobrar os dois tiros livres cedidos pela falta, Angel foi recebida por uma arena inteira vaiando, o que é bem normal. O problema é que, em meio a essas vaias, ao errar a primeira cobrança, os microfones da transmissão da ESPN captaram sons que supostamente se tratavam de imitação de macacos. Ou seja, possivelmente, a torcida do Indiana estava imitando macacos enquanto uma jogadora preta que passou 2024 inteiro sendo pintada como agressiva shootava tiros livres. Ter uma atitude e ser crítica à como a associação nacional trata certas jogadoras com privilégio não é crime. Agora, cometer atos de racismo… A WNBA publicou uma nota dizendo que vai investigar o caso e tomar as “devidas providências”.
Com certeza tu estás te perguntando: se o texto é sobre a Kamilla Cardoso, por que eu estou envolvendo a Caitlin Clark e a Angel Reese? Eu te digo. Essa onda de racismo na Reese já foi longe demais e está, inclusive, rendendo que stalkers e assediadores online possam se sentir confortáveis para frequentarem os jogos court side e berrar absurdos para a ala pivô do Chicago. Isso tudo vindo da torcida rival, que já recebeu críticas de cunho racial vindas de estrelas como Alyssa Thomas e a própria Dijonai Carrington. Agora, imagine quando essas críticas e comentários degradantes vêm da sua própria torcida.
Cardoso chegou à W em 2024 depois de levar dois campeonatos nacionais com os Gamecocks da faculdade da Carolina do Sul - um contra as atuais campeãs de UConn e o outro em cima do Iowa de Caitlin Clark. A camisa 10 da seleção, que estava cotada para ser a quarta ou quinta escolha do draft, ficou atrás apenas de Clark e Cameron Brink, sendo a brasileira de escolha mais alta da história. Ao chegar, ela já tinha sido eleita MVP de três campeonatos: um pela universidade, outro pela seleção, no Campeonato Sul-Americano de Basquete de 2022, na Argentina, além de ser a melhor jogadora da Americup de 2023 e da final contra os Estados Unidos.
Sua média durante o college é invejável, visto que terminou a temporada de 23/24 com 16.6 pontos, 10.8 rebotes e 1.6 bloqueios por jogo. Uma pivô com números de pivô, resultado de um time que jogava não em função de Kamilla, mas valorizando seus pontos fortes. Muito, muito, diferente do que o Chicago Sky do técnico Tyler Mash tem feito até o momento.
Mash se recusa a colocar Kamilla e Angel - dupla conhecida como Skyscrapers por conta de sua sinergia - a jogarem ao mesmo tempo. No jogo contra o Los Angeles Sparks, Cardoso saiu depois de 3 minutos em quadra, apesar de já ter uma cesta e quatro rebotes em sua contagem. Jogando, pelo menos, 6 minutos a menos que todas as titulares, a camisa 10 saiu com 12 pontos, 6 rebotes e 3 assistências. Se bancando a maior parte do jogo ela conseguiu ser o melhor aproveitamento do time, imagina o que poderia fazer com mais tempo em quadra. Contra o Phoenix Mercury na última terça (27), deixou o jogo praticamente ganho no terceiro quarto e viu seu time se acovardar e levar a virada. Mesmo voltando só na última parcela da partida, Cardoso saiu com 16 pontos, 9 rebotes e 4 assistências, sendo assim, a segunda maior pontuadora e a segunda melhor "reboteira” - só atrás de Ariel Atkins e Angel Reese, respectivamente.
Desde a estreia contra o Indiana Fever, Kamilla tem implorado pela bola embaixo da cesta, pronta para fazer sua tabela que já virou marca registrada e sido ignorada por suas armadoras. A única pessoa que parece lembrar da existência é Reese, sua dupla não oficial que também não tem estado confortável com o sistema de distribuição de Vandersloot, visto que a camisa 22 prefere shootar de 3 a passar para suas atacantes. Sendo ordem de Mash, ou não, isso é inaceitável. Não existe espaço para travar a evolução clara em números e em imagem de Kamilla e de Angel.
Na internet, mesmo sendo claro que o sistema de jogo não está ajudando a pivô, a torcida de Chicago tem sido cada vez mais agressiva ao mostrar sua indignação com o desempenho de Kamilla. Comentários chamando a brasileira de preguiçosa deram lugares a uma parcela quase insignificante, porém real, de internautas mandando que a jogadora “voltasse pra casa” e apagando os posts logo depois. Interessante, não? Raiva esportiva misturada com uma pitada de xenofobia e leves desconhecimentos táticos sobre o jogo. O que mais me surpreende é que as demais estrangeiras não são tratadas da mesma maneira. Talvez porque elas venham da Europa, mas isso é só um palpite.
A rookie francesa Carla Leite teve os primeiros jogos bem abaixo do que se esperava dela e, mesmo que jogue profissionalmente desde os 18 anos, é tratada como uma novata na competição. Outra rookie que mal teve minutos, mas ainda é vista com a esperança de só precisar de espaço para mostrar o que sabe é a, também francesa, Dominique Malonga. Do lado das veteranas, a armadora alemã Leonie Fiebich apareceu pouquíssimo, mesmo nos momentos que o New York Liberty mais precisou dela para desafogar o perímetro. Honestamente, nenhum comentário além de que se esperava mais de sua atuação.
Nenhuma destas é vista como preguiçosa. Nenhuma delas precisou ler que é óbvio que alguém como ela não se adaptaria ao alto nível da WNBA. Nenhuma têm seu biotipo questionado e mal interpretado - visto que é impossível que uma pivô forte de 2,01m de altura seja leve e veloz, ao invés de extremamente física. Existem europeias draftadas que ou estão lesionadas, ou só chegam na próxima temporada, e nenhuma foi recebida com a típica xenofobia americana. Que surpresa.
Assistir a isso acontecer com um talento absurdo natural de Montes Claros, Minas Gerais é sufocante para todo brasileiro que é apaixonado por esporte e, principalmente, pelos nossos tesouros. Kamilla parece lidar bem com isso, visto que mostra insatisfação clara com o game plan usado em quadra, mas segue se esforçando para ajudar o time. Contudo, páginas brasileiras que falam sobre basquete - principalmente as focadas na NBA - e até algumas atletas estão ajudando nessa imagem absurda pintada de certas jogadoras. Seja falando de Cardoso só quando ela joga abaixo, ou mesmo alimentando a narrativa de que Caitlin Clark é perseguida por jogadoras pretas, parece que eles não entendem o poder da palavra e da falta de contexto.
A minha pergunta é: e quando Kamilla começar a ser bem utilizada, Clark parar de fugir dela como o diabo foge da cruz e a armadora estrela levar um toco bem dado da nossa brasileira? E quando o ódio que era direcionado a Cardoso durante o college por ter impedido Clark de conquistar seu anel de campeã voltar à tona? Vamos ficar só assistindo e aceitando que ao sul do Equador tudo é mais difícil ou vamos defender a nossa garota? Porque já passou da hora de começar a fazer o segundo.
Texto por: Luiza Corrêa
Edição: Lucas Guedes